sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O que aconteceu mesmo?

Nesta semana estávamos exercitando a escrita de crônica na faculdade (Só para lembrar, crônica é um gênero literário produzido para ser veiculado na imprensa. Provavelmente é o estilo que mais aproxima jornalismo e literatura, e nada mais é do que um comentário breve sobre algum fato).

Deveríamos nos inspirar em alguma nota recentemente veículada no jornal. Tema? Violência.

A minha noticiava um assassinato ocorrido em Montes Claros/Norte de Minas. Ainda não se sabia o motivo do crime, mas o jovem havia levado 5 tiros nas costas quando saía de uma mesa de bar com a namorada. Os assassinos (dois homens que fugiram de moto) ainda não haviam sido identificados.

Foi quando "caiu a ficha": Aquilo havia acontecido de verdade!!
O que para mim e meus colegas era um tema para a crônica, havia ocorrido de verdade! Com pessoas como eu, como você!

Quem era esse jovem? Como era? Do que gostava? Como estariam os familiares agora? A namorada? O que deveria estar sentindo?
Meu coração sentiu um vazio enorme pela falta de respostas...

Quantas vezes vemos acontecimentos como esse sem nos darmos conta de que poderiam ter sido conosco? E o que estaríamos sentindo agora se assim fosse?
Acostumamo-nos a ver as pessoas como números. "Morreram 10!" " 50 foram atingidos!"
Elas não são números nem estatísticas... são seres humanos! Têm uma história!

Isso me faz lembrar de um conto sobre o qual fiquei refletindo por um bom tempo...
Transcreverei a seguir:



Uma Vela para Dario
Dalton Trevisan



Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

(Texto extraído do livro "Vinte Contos Menores", Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág.20.
Este texto faz parte dos 100 melhores contos brasileiros do século, seleção de Ítalo Moriconi para a Editora Objetiva.)



Até quando suportaremos a indiferença, a insensibilidade, a reificação, ou, o que talvez seja pior, a espetacularização da tragédia?

Pensemos nisso...

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